Dentro da baleia a vida é tão mais fácil

Terceiro texto sobre o medo do modo com que me relaciono com a comida. Os textos anteriores podem ser encontrados aqui e aqui.

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whenwillmyreflectionshowwhoiaminsideO balão, ao longe, robusto e frágil, sobe. Subindo, subindo, subindo. Uma Alice ao inverso. Ele sai do país das Maravilhas e vai para o país da distância. Do túnel para o ar. Quando se toma distância, as coisas parecem pequenas, insignificantes, e não podem mais nos ferir. Elas ainda existem, elas ainda estão lá, mas o balão não está. Mesmo pequenas, e quase insignificantes, as coisas ainda podem nos ferir, porque o passado nunca está no passado. Está no cheiro que ficou impregnado no moletom. Está no formato dos dentes que ficou no pedaço de pizza congelada. Está no copo com o fundo sujo de café.

Subindo, subindo, subindo, cheio de vento, cheio de nada, cheio do nada, longe de tudo, longe de todos. Subindo, subindo, subindo. Um Ícaro. Quanto mais sobe, mais o balão quer subir. Quanto mais sobe, mais perto do sol, mais perto de Deus, mais perto de cair, mais perto de Lúcifer. O passado o alcançou. As asas de Ícaro começam a derreter. As minhas lágrimas começam a cair. E o passado, que estava pequeno, quase inexistente, fica imenso, me pressiona, e eu tento me esconder. Corro para o meu quarto, pego o meu prato de macarrão com frango, sento no vão entre a cama e a parede, e como para não sofrer.

Eu, transmutada em balão, começo a pegar os pedaços do passado com formato de nuvens e tento engoli-los. Tento comer todas as nuvens, e quanto mais como, mais nuvens aparecem. E, quando coloco os pedaços de nuvem na boca, como algodão doce, eles diminuem, perdem consistência e, logo, desaparecem na boca. Eu não quero encarar as nuvens. Eu queria entender o passado, mas não quero enfrentá-lo. Ele, no entanto, me encara, me deixa intimidada, me deixa acuada. Eu como para me sentir maior do que o meu passado e, desse modo, impedir que ele me devore. Mas eu como e me sinto vazia, eu como para preencher um vazio que não se pode preencher.

De algum modo, internalizei a noção de que se eu for grande, se eu for imensa, eu vou me proteger, eu vou cuidar de mim, eu vou lutar por mim, vou tatuar flores nas cicatrizes internas, vou iluminar os lugares obscuros do meu interior. Eu como para sobreviver ao meu passado, mas isso me impede de ficar com os pés no presente. Eu sou Jonas dentro da baleia, mas como tudo quanto é alimento que vejo na esperança de, como as asas de Ícaro, passar do estado sólido para o líquido, romper as barreiras impostas pela baleia, e me juntar ao mar, e me tornar o mar. Mas Ícaro, ao cair no oceano, se afogou.

O que está dentro da baleia também está fora. Os medos que estão dentro da minha mente enquanto tento me refugiar dentro da baleia, continuarão lá quando eu for oceano. A casca do pão é, também, o miolo. Com algumas alterações, exposta a uma quantidade maior de raios solares, de olhares, exposta ao clima, e firme, sempre firme, até virar farelo de pão.

Não é amor pelo que está dentro, é culpa por ter abrido mão do interior por não conseguir encará-lo. É culpa por ter colocado o que estava dentro de mim em uma trouxa e mandado partir, no primeiro balão, para o céu. Mas o que estava no interior não foi embora, não foi arrancado. Como o miolo do pão, ficou em mim, para me lembrar de que foi rejeitado, para me lembrar de que eu reluto em aceitá-lo e, por isso, ele me controla, me leva para dentro da baleia. Estar dentro da baleia é como estar morta. Aceitar sair de dentro dela e ficar sobre ela, é compreendê-la como um barco, que me levará para a margem, para a ressurreição, para uma nova vida. Eu não quero ser o mar, eu não quero ser o ar, eu não quero ser a terra. Eu quero ser eu. Quero ser um “eu” que, como os balões, como as embarcações, é construção, é costura, e tece, com as linhas do passado, o futuro que transborda das margens do mundo para dentro de mim.

Do lugar onde estou já fui embora

Segundo texto sobre o medo do modo com que me relaciono com a comida. O primeiro texto pode ser encontrado aqui.

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Van Gogh, Pair of Shoes, 1886Consigo me lembrar do cheiro de coisas que não como há anos. Consigo me lembrar da dormência que a Coca-Cola causava sempre que eu colocava um pedaço de frango, assado, na boca e, em seguida, bebia um gole desse refrigerante. O gás da Coca fazia com que a carne ficasse borbulhando, e isso adormecia a minha língua. Não bebo mais Coca-Cola, mas a minha boca ainda me adormece.

Acordo ao sentir o cheiro da casca da mexerica. Antes de descascar essa fruta, gosto de levá-la até o meu rosto, para quando começar a tirar a casca, sentir o frescor dos pingos do líquido que sai dela. A ingestão da mexerica é rápida, quase automática, mas o cheiro que fica nas minhas mãos é duradouro. Diferentemente do laço do cadarço do meu tênis, que sempre se desfaz. O cadarço do tênis, aparentemente, está tranquilo, com um laço bem feito, e visível. Começo a caminhar, segura, contra o vento, e com os cabelos alvoroçados. Os brincos seguem a Primeira Lei Newton, e balançam; eu sigo a lei do medo, e tropeço.

O cadarço desamarra e eu preciso parar, encontrar um lugar para apoiar a perna e refazer o laço do cadarço. Se eu tivesse construído um laço mais forte, não precisaria parar, não precisaria mudar o ritmo, não precisaria pensar. Eu não quero pensar. Eu quero correr para não pensar, eu quero comer para não pensar, eu quero me concentrar no barulho dos carros, no barulho das conversas entrecortadas, no som e na fúria da vida, para ignorar o som e a fúria de tudo o que tento soterrar com a comida.

Mas eu tenho de refazer o laço do cadarço do tênis. Dessa vez, será um laço forte. Dessa vez, será um laço firme. Dessa vez, será um laço que não poderá ser desfeito porque, desde que os laços fortes que eu tinha começaram a me sufocar ao invés de me reconfortar, tenho me contentado em criar laços frágeis. Mas isso não impede que eu sofra, impede que eu caminhe. Sempre que tenho de parar para refazer os laços, revivo a dor dos laços desfeitos. Então, eu espero. Paro e espero por um sinal. Paro e espero que, durante aqueles segundos em que eu estiver refazendo os laços, algo aconteça, o passado me alcance e me explique tudo o que eu jamais pude entender.

Mas ele não vem, e eu sempre volto para o laço mais forte que fiz: o laço com a comida. Eu comia a minha dor, para não ter de enfrentá-la, eu comia a minha dor, para não ter de senti-la. Mas o laço com a comida também não era o laço de que eu precisava, porque não era um laço de equilíbrio, era um nó, uma dependência, um desatino. Sei que, embora eu não goste da minha fome, ela ainda é minha, e me leva para a comida, aquela que, durante boa parte da minha vida, foi a resposta para tudo. E ainda o é. A comida ainda é a resposta para as perguntas que não consigo formular, para as inseguranças com as quais não consigo lidar, para a dor que não consegui elaborar. E esse é um laço que eu não quero mais alimentar. Esse é um nó que eu preciso desatar.

Não quero, mais, ter laços com as comidas que comia há anos, com as lembranças que me perseguem há anos, com um passado que me machuca há anos. Por isso, para não ter, mais, de refazer o laço do cadarço, tirei o tênis. Com os pés no chão, não preciso me preocupar com laços físicos, apenas com os passos emocionais. Passos que fazem com que a poeira se levante do chão, passos que fazem com que a poeira entre pelos meus dedos e saia para o mundo. Passos que ressoam no futuro. Passos que me fazem compreender que esperar é acreditar que apenas o passado existe e que seguir em frente é saber que há um futuro.

 

Dentro do bombom há um licor a mais

piorar antes de melhorarDe tanto esperar passar, não aprendi a fazer passar. De tanto esperar pelo depois, desaprendi a aproveitar o agora. Eu ainda estou esperando. Eu ainda acho que acontecerá algo extraordinário. E acontecerá. O milagre do pão, não dos peixes. O sabor do pão, com casca e miolo. O vento no rosto, jogando as cascas de pão na roupa, e os farelos de pão, grudados ao casaco. A liberdade, ela acontecerá.

Como farofa, apimentada, sem ingerir nenhum líquido. Como torresmo, crocante, sem ingerir líquido. Como farofa com café. Como torresmo com café. E como, também, os olhares que se surpreendem com essas práticas inusitadas. Não bebo refrigerante, não sou muito fã de suco; água, bebo quando estou com sede, ou, bem gelada, quando uso para molhar o biscoito Maizena, até que ele quase se quebre, até que ele quase seja dissolvido e, então, procuro levá-lo, imediatamente, à boca.

Às vezes, ele se quebra. Às vezes, ele fica tão mole que não consegue fazer o percurso do copo até a boca e fica caído, feito borra de café no fundo do coador, na mesa, ao lado do miolo de pão, tirado, à força, da casca; deixado para trás, com as marcas dos dedos que o tiraram da casca, amassaram-no e deixaram-no abandonado no canto da mesa, para cair, para sair de cena.

O barulho do pacote de biscoito, vazio, sendo amassado, é o eco do agora que nunca existiu. O eco do agora que, como o pão, não tem miolo. Mas esse barulho também pode ser um vislumbre do vento que virá, do vento que fará o vestido colar ao corpo, do vento que fará com que os farelos de pão saiam da roupa e fiquem espalhados pelo chão, servindo de alimento para os pássaros ou se juntando ao pó, que caíra da roupa e, se o agora estiver no depois, ficará grudado na sola dos meus sapatos.

Algo extraordinário acontecerá. O pão, sem manteiga e sem café, será comido, enquanto eu caminharei pelas ruas. As cascas de pão ficarão na minha roupa, as pessoas olharão para as cascas e comprarão Kinder Ovo. Ele, como o pão que ficara na mesa, é só casca. É a mais bela casca, cujo sabor se sente com os olhos. Ao quebrar da casca, a surpresa: um brinquedo, sem significado, sem substância, sem impacto no agora, sem sustância, mas pelo qual se paga caro.

De longe, a cena é vista. De longe, vê-se que, ao mordiscar a casca, caí dentro do Kinder Ovo, tornei-me um brinquedo. É o preço da espera pelo entendimento do passado. É a pressa de adiar o agora. É o preço de, tal qual um personagem de um famoso conto popular, colocar o pão no vapor da carne, para que ele fique com o sabor do assado, e ser cobrado por isso. É o preço de não entender que o barulho do pacote de biscoito vazio sendo amassado é o que se paga por não viver o agora, assim como o barulho das moedas é o preço a se pagar pelo cheiro da carne que o camponês quis capturar ao colocar o pão no vapor; é o preço a se pagar por pegar o pão, sem miolo, e fazer com que ele seja uma luneta que, mais do que mostrar o passado, me joga, em um interminável agora, para dentro dele.

O fogo oculto que habita as cinzas silenciosas

Terceiro texto sobre o medo de não se importar/ ser indiferente. Os textos anteriores podem ser encontrados aqui e aqui.

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O outro não é da minha conta, como eu não sou da conta dele. Por trás de uma aparente indiferença, está a minha dor por  sentir-me, de algum modo, negligenciada. Cobro do outro por não me dar atenção, tal qual uma criança grita para ter a atenção dos pais, e se ele tenta me dar atenção, digo que sou crescida o suficiente para me cuidar, e evidencio meu psiquismo primitivo, minha noção distorcida de autossuficiência, que, trocando em miúdos, encobre minha carência.

Assim, cabe ao outro a ingrata tarefa de decifrar o significado patogênico no meio da polifonia dos significantes que lhe apresento. Mas ao seguir as pistas falsas que deixo pelo caminho, ele está praticamente fadado a falhar. Personifico o superego e me outorgo a tarefa de punir  o outro por ousar tentar me tirar de um estado catatônico, um estado em que a indiferença com que fantasio tratar os outros é a mesma com a qual me trato. Se eu sou negligente comigo, por que o outro não o seria? Se negligencio minhas necessidades, e tento me safar disso com a desculpa de que o faço inconscientemente, eu não sei, com clareza, a quem pertence o meu inconsciente, eu me eximo da responsabilidade de reclamar a autoria das minhas ações.

Desse modo, escolho me defender das minhas angústias por meio de uma configuração narcisista da personalidade. Assim, coloco-me como a única pessoa que precisa lidar com situações traumáticas: “Por que é comigo que essas coisas sempre acontecem?”. Se o outro tenta dizer: “E  por que não também com você?”, tenho um ataque de fúria. Não consigo perceber que o outro não está minimizando o meu sofrimento, apenas está abrindo o leque para que eu possa ver que não sou a única a sofrer, que não sou a única a me frustrar, que viver é muito mais do que se olhar no espelho.

Conviver é como praticar o  o jogo do rabisco, de Winnicott. O psicanalista utilizava tal jogo para falar da dinâmica entre analista e paciente, entretanto, ela também acontece nas relações afetivas. Uma pessoa faz um rabisco verbal e a outra interpreta-o e acrescenta outro rabisco ao rabisco angular, e assim, com contestações, confirmações e paradoxos, se constrói uma relação.  O ataque aos vínculos, ou o ataque à possibilidade de eles existirem, constitui um sistema oriundo da parte psicótica da personalidade, que visa à constituição de relações estéreis, frágeis, descartáveis com o outro e consigo. Com o outro e comigo.

Como me sinto interfere no modo como sinto o outro, tanto para uma idealização quanto para o denigrimento. Por isso, comprometer-me afetivamente com a minha narrativa – a honesta, não a idealizada – é crucial para que eu assuma responsabilidade por ela. Ou seja, para que eu possa me responsabilizar pelo que falo e faço, é essencial que eu tenha predisposição empática diante de mim; mesmo que o impulso inicial sugira que o certo é que eu sinta aversão pelas coisas malfeitas e, aos olhos do superego, reprováveis, pelas quais sou responsável.

Nomear as experiências emocionais é uma forma de me responsabilizar por elas e me submeter a uma castração simbólica, isto é, transitar do campo do imaginário para o campo do simbólico.  Recordar, associar, elaborar para, então, mudar. Nesse processo, é primordial que eu não caia na armadilha de uma busca desenfreada pela verdade, porque isso poderia impossibilitar a aquisição de uma atitude de sempre ser verdadeira comigo, o único caminho viável para que eu possa atingir um estado de liberdade interna.

 

Onde não queres nada, nada falta

Segundo texto sobre o medo de não se importar/ ser indiferente. O texto anterior pode ser encontrado aqui.

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Não é da sua conta. Se o vizinho passa fome, se o filho do vizinho está doente, se tem uma pessoa chorando no ônibus por estar desempregada, se alguém ficou de cara virada para você: não é da sua conta. O que acham de você não é problema seu, o que pensam de você não é o que você é, o que falam sobre você não condiz com a realidade. Não se importe. O segredo é não se importar. O segredo é não criar vínculos emocionais.

O segredo é não tentar resolver os problemas dos outros, já que você tem os seus problemas. Você está doente, você está desempregada, você está de cara virada para meio mundo, mas é só o jeito que você encontrou para se proteger, para não viver, para continuar só, e reclamar de estar só, e culpar o outro por te deixar só, e não se responsabilizar por não se importar, por preferir a solidão à compaixão.

Se o outro não adivinhou que, apesar de amar chocolate, você só toma casquinha de baunilha, o problema é dele por não ter te perguntado, não seu por não ter mencionado. Você se comunica muito bem, o outro que não faz as perguntas certas, as perguntas que você considera certas e, por isso, você há de puni-lo por, na inocência, tentar te fazer uma surpresa com uma casquinha de chocolate.

Você não pode agradecê-lo pela intenção e explicar, de maneira educada, que não toma casquinha de chocolate, precisa dizer que ele está querendo decidir tudo por você, que ele quis mostrar que sabe muito e que não sabe nada e que você, por exemplo, sabe que sua sobrinha mais nova só toma danoninho verde, o de maçã, e que o sabe por ter lhe perguntado.

Nesse momento, você se desloca para o lugar da sua sobrinha, uma criança cujos pais estão tentando auxiliar no crescimento, alguém cujo paladar para os sabores e dissabores do mundo está começando a se desenvolver, e que, por isso,  é sempre abordado com cautela pelos pais. Você se coloca como uma pessoa frágil, que tem dificuldade para lidar com quaisquer adversidades, e que lida com elas jogando-as no colo da primeira pessoa que aparece.

Você se coloca como alguém que se recusa a não ter o controle de tudo e que recusa a maturidade em nome de uma falsa sensação de controle. E não se importa, porque o segredo é não se importar nunca. O segredo é cuidar de você, mesmo que isso signifique ferir o outro. Mas você também já foi ferida, e sobreviveu; nem por isso ousa dizer que não morreu e não se fortaleceu, porque você não encara as situações difíceis por tempo suficiente para se fortalecer, antes se volta para o espelho, para os reflexos a partir dos quais age toda criança; volta para a repetição sem reflexão, sem encontrar uma saída sublimatória para seus conflitos.

Desse lugar, culpa o outro por te deixar só, por te permitir ficar só, porque você ainda espera que o outro te deixe ser feliz, que o outro te permita ser feliz, você ainda pede permissão para um outro que existe como fantasia, não como realidade; que existe como uma autoridade, não como um igual; que existe como um corpo sem a fronteira da pele emocional e, por isso, espalhado por todos os lugares.

 

Às vezes, não sara nunca; às vezes, sara amanhã

O outro não é espelho, por isso, não consigo percebê-lo. O outro não é barulho, por isso, não consigo ouvi-lo. O outro não é agressividade, por isso, não consigo compreendê-lo. O outro tenta ficar,  mas não cresci em um mundo em que ficam, por isso, o faço partir. O outro não sou eu, por isso, não sei quem sou, não me percebo. Falo sozinha para saber que ainda posso falar, e falo diante do espelho, para ver minha boca se mexer e ter a certeza de que estou falando, porque eu não consigo me ouvir.

Mas o espelho reflete os movimentos, não amplifica a voz. Diante do espelho, mexendo a boca e gesticulando com as mãos, sinto o silêncio das palavras ditas e não ouvidas me machucar, e volto ao lugar que criei para fugir dos gritos constantes. Não é com você, seus pais não estão gritando com você, não precisa se dissociar da realidade; mas era comigo, como o é com qualquer criança, cuja dimensão do mundo é dada pelo ego e mediada pelo corpo.

E isso abriu uma ferida que meu corpo não conseguiu fechar. E isso abriu uma ferida que determina o meu modo de me relacionar com os outros. Eu não sou capaz de ouvir palavras de afeto, meus ouvidos não conseguem captá-las. Mas quando palavras ríspidas são proferidas,  a pessoa tem a minha atenção. Toda a violência que absorvi na infância ainda está dentro de mim, à espera de um gatilho para colocar tudo a perder.

Eu me perdia no barulho. Nas palavras grosseiras, nos insultos constantes, música que eu era obrigada a ouvir, mesmo que tivesse a inocência de acreditar que ela seria barrada pelas paredes de concreto que eu tentava criar ao colocar as mãos nos ouvidos. É a música que, ainda hoje, eu reproduzo quando convido pessoas para a minha vida. Mas eu não convido. Coloco a música bem alta, para que as pessoas se afastem, porque se elas se aproximarem de mim, cairão dentro da minha ferida. A ferida que eu guardo, a ferida que eu escondo, a ferida que  não para de crescer.

Falo como se estivesse diante do espelho, mesmo que eu esteja diante de alguém, para ter a impressão de que estou me comunicando e temo não ser compreendida, porque eu não compreendo o outro além do que ele reflete de mim. Eu não compreendo quando o outro se aproxima de mim de modo não agressivo. Eu não compreendo a presença da paz porque eu só conheço a guerra. Falo cada vez mais alto e tenho medo de não ser ouvida, porque eu não consigo ouvir o outro. Não ouço o outro para não começar a acreditar que ele pode ficar, mas se acredito, me escondo dentro da ferida.

A diáspora do eu

Terceiro texto sobre o medo de zumbis. Os textos anteriores podem ser encontrados aqui e aqui.

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O modelo de relacionamento a partir do qual me guiava era o de ceder até me perder, até  ter tanto dos outros em mim, que eu me vestia dos outros e me despia de mim. Desse modo, eu borrava as fronteiras entre o eu e o tu, e não sabia mais quem eu era nem quem tu eras. Depois de um tempo, no vazio do não corpo, eu reclamava algo de meu, eu reclamava quaisquer vestígios de subjetividade que ainda pudessem habitar o amontoado de outros que eu tinha me tornado.

A ideia de uma significação singular reclamava um modo de existir não por eu ter me desterritorializado, mas por eu ter cedido não no que era dispensável para a minha expansão enquanto sujeito, mas especialmente no que, de algum modo, me colocava na posição de sujeito. E, mesmo com todas as cessões, fiquei só. Restaram-me, dos outros, os fragmentos de sujeitos que eles eram quando se relacionavam comigo.

Fragmentos que aceitei incorporar à mim, por, de certo modo, desejar ser outra que não eu. Mas o que veio dos outros nunca se encaixou no vazio do que eu expulsei de mim, no vazio em que antes estiveram todas as minhas vontades. Nesse amontoado de espaço, onde antes havia fronteiras, os zumbis são a corporificação das diferenças irreconciliáveis entre o que eu era e o que eu desejava ser, entre o eu e o tu, entre o desejo consumado e o desejo reprimido.

Os zumbis são uma criação do meu inconsciente que me atacam sempre que estou prestes a superar algo, a ressignificar uma situação, a descobrir os segredos ocultos do medo para desmitificá-lo. Monstros sempre se levantam da mesa quando estão prestes a serem dissecados. Então eles fogem, noite adentro. Para dentro da ferida não curada. Aquela ferida que, por fora, está fechada,  cuja pele já foi renovada, mas lá dentro, há um oco, um buraco em que se escondem sangue pisado e dor.

Quando olho para as feridas expostas dos zumbis, quando olho para as feridas expostas que são os zumbis, eu sinto raiva por eles me fazerem lembrar das feridas que tapei com pele e orgulho, mas que, por dentro, estão mais abertas do que nunca. Às vezes, elas doem tanto que o que eu mais quero é que as pessoas consigam enxergá-las através da minha pele, e corram para me ajudar a curá-las. Mas sei que preciso curá-las sozinha. Preciso me aproximar de cada zumbi, tocá-lo, e pegar um pouco do eu que fui esparramando, feito migalhas, enquanto tentava ser  uma inexistente e perfeita outra.

O silencioso triunfar dos traumas no tempo

Segundo texto sobre o medo de zumbis. O texto anterior pode ser lido aqui.

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Com muita frequência, perco o momento de agir, o que me coloca na posição de ser uma pessoa que reage. E reações, quando não são quimicamente testadas e matematicamente calculadas, costumam ser imprevisíveis e, por vezes, desproporcionais. Não falo, de imediato, que uma atitude me desagradou, a pessoa repete a atitude, e incorpora novas atitudes que me incomodam na maneira de se relacionar comigo.

Então, eu decido reagir, e solto tudo o que vinha remoendo desde a primeira atitude que me desagradou, mas ignoro que o desconforto que tal atitude me provocou não era uma informação que a outra pessoa tinha, o que inviabilizava que ela se desculpasse, porque lhe faltava uma informação essencial, uma informação real. E aquela primeira atitude não existe mais, não como foi concebida, não como aconteceu realmente. Já virou um zumbi, que se alimentou de todas as atitudes subsequentes da pessoa, e de todas as vezes em que, por já estar irritada, eu amplifiquei as falas e os gestos alheios. E então eu me sinto culpada, e caio da escada.

A maioria dos medos é imaginária. Constitui-se de traumas não superados que, inconscientemente, projetamos em objetos, ações, circunstâncias e pessoas. As escadas, das quais me vejo cair com uma constância desesperadora, não têm o poder de me ferir, nem de me derrubar, mas desloquei todo o medo das quedas anteriores para elas. E vejo os meus pés se desequilibrando, e chego a sentir o gosto do sangue na boca, de tão real e próxima que parece a queda. E vejo os zumbis, trôpegos, com o rosto desfigurado, se aproximando. Fecho os olhos, e vejo-os com ainda mais exatidão, com todos os buracos onde deveriam ter carne, e com a pele cinzenta, azulada, em decomposição.

Projeto nos inexistentes zumbis todas as feridas que já tive em muitas das vezes em que caí. E por mais que tente superar esses traumas, não consigo dar um novo significado às coisas, não consigo restabelecer as pazes com as partes avulsas da minha vida, com as lembranças do que deixou de ser e do que ainda está aqui. Em Mal-Estar da Civilização, Freud disse que a escrita foi, em sua origem, a voz de uma pessoa ausente .

Analogamente, o medo de zumbis é a voz de um trauma, uma cicatriz, a marca de algo que, mesmo não existindo, teima em se fazer presente. Preciso encontrar um modo de me inscrever no espaço da ausência. Só assim poderei dar um novo significado à voz que ecoa do trauma causado pela minha inação que, associada a culpa advinda das reações desproporcionais, me faz cair  do topo dos nove círculos do Inferno de Dante.

 

 

 

Eu sempre posso sofrer no ano passado

Mudar de medos, mudar de obsessões, mudar o jeito de cometer os mesmos erros. Repetir padrões, e não prosseguir. Projetar, no presente e no vislumbre do futuro, todas as mágoas passadas, todas as dores guardadas, todas as piores e mais traumatizantes lembranças. Alimentar os medos, alimentar obsessões, alimentar os inúmeros jeitos de cometer os mesmos erros. Creditar às pessoas recém-conhecidas todos os erros cometidos pelos conhecidos de longa data. E me sentir, ao fim do dia, como uma caricatura da pessoa que eu poderia ser.

No jogo das projeções, todos perdemos. Quando pensamos que podemos substituir esta por aquela pessoa, acabamos por projetar na última o que sentíamos pela primeira, o que impede que conheçamos a pessoa que está à nossa frente e  pretende continuar na nossa vida. Não damos chance para quem tenta se aproximar, porque já assumimos que ela é a pessoa com a qual temos assuntos não resolvidos e, de antemão, colocamo-la no campo das pessoas que devemos odiar ou amar irrestritamente.

Assim, ficamos presos em algo que, em completude,  não existe mais, mas que não deixou definitivamente de existir. Ficamos presos aos zumbis. Não a um zumbi em si, porque assuntos mal resolvidos, antes de estarem só, estão mal acompanhados. Não tenho medo de um zumbi específico, porque, na minha imaginação, zumbis não têm singular, aparecem todos juntos e, enquanto uns me encaram de frente, outros me atacam pelas costas, pelos lados, saem das paredes, do chão, do teto e de dentro de mim. Sinto sair uma mão de dentro do meu estômago só para, em seguida, vê-la agarrar o meu coração, e caio da escada.

Não importa a quantidade de degraus, não importa o quão firmes meus pés pareçam estar, eu me lembro de todas as vezes em que caí da escada, e sinto todas as dores provenientes das quedas. Ao terminar de descer a escada, fico surpresa e frustrada por não ter caído, e já começo a imaginar o momento em que a queda virá, e ele parece próximo e distante, nunca inofensivo, porque zumbis, mesmo que não estejam tecnicamente vivos, podem ferir, e ferem, quem está vivo.

Para prolongar o sofrimento, os zumbis deixam o meu cérebro por último. Para eles, é importante que eu tenha consciência de todos os traumas que tenho de reviver, de todas as culpas que tenho de remoer. Catatônica, já não enfrento meus traumas, de sempre trazê-los comigo. E não vejo a pessoa que sou hoje, por estar sempre olhando para a pessoa que eu fui, e com a qual tenho assuntos irresolutos. Depois de um tempo vivendo  entre zumbis, eu nem sei mais o quanto de mim ainda está vivo.

O medo é uma pressa que vem de todos os lados

Terceiro texto sobre o medo de altura. Os textos anteriores podem ser lidos aqui e aqui.

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MorteSandmanApego-me aos preceitos epicuristas e acredito que tudo é feito de átomos e tudo a eles retornará. Movimento. Repouso. Organização. Desorganização. Reorganização. Apego-me às verdades herdadas para não ter de ceder à imperturbabilidade cética. Apego-me às lembranças para fugir dos aconchegos das pequenas mortes. Recuso-me a encontrar com elas e, desse modo, não consigo fazer diferenciação entre  vida e  morte. Assim, pulsão de vida e pulsão de morte se misturam, me anulam.

No meu silêncio, a minha presença. Na minha fala, a minha ausência. Todas as ausências. De corpo, de voz, de vida que se refrata no ar. Ausência de sentidos, confluência de temores que me conduzem à queda que, por sua vez, precede o medo de altura. Sempre a queda. Sempre a figura de Lúcifer. Sempre joguete de Deus. Sempre a crença em uma intervenção divina. Sempre um movimento de idealização singular. Movimento que retarda o meu encontro com o inconsciente.

Ao fugir das dores, cristalizo o sofrimento, coloco-o em um pingente que carrego no meu pescoço, enquanto acredito que posso controlar tudo. Aperto-o contra o meu peito, e ele começa a pesar. É questão de tempo até o pingente, como vitral que se quebra e deixa cacos por todos os lados, se despedaçar.  Corro para dentro de mim, tento fechar as portas internas, mas estou em um labirinto e não consigo encontrar as portas. Passei tanto tempo evitando me conhecer que sou um corpo estranho e, por isso, hostilizado.

O chão do labirinto é devorado por um precipício formado por todas as mortes que adiei. Vou cair. Não tenho medo de altura. Tenho medo de morrer. Tenho medo de morrer dia após dia. Tenho medo de morrer uma vez por segundo e continuar viva. Tenho medo de morrer de fome. Tenho medo de morrer de amor. Tenho medo de morrer de medo. Tenho medo de morrer de frio. Tenho medo do depois e, por isso, me perco no agora. Tenho medo de morrer porque tenho medo de aceitar que  não posso controlar as coisas. Tenho medo de admitir que não posso controlar nada. O medo é tudo o que eu tenho, por isso, não deixo que ele morra. Tenho medo que o término interrompa o sempre e, assim, conforme o cair da areia da ampulheta, a vida se renove.